Por Barbara
Muglia-Rodrigues
Mestranda em Cultura, Organização e Educação - FE - USP
Coordena as atividades do Núcleo de Dança do LAB_ARTE / FE-USP
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Autor desconhecido (Fonte: google) |
Em 2009, no início de minha licenciatura
escrevi um texto intitulado “Como paramos de desenhar jiboias que digerem
elefantes”, no qual a discussão se fez inspirada pelo célebre “O Pequeno
Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, e acerca da formação básica conteudista
e instrumental que vivemos principalmente nos vinte primeiros anos de nossas
vidas, do como ela vai podando nossa criatividade, nos ensinando a pensar
padronizadamente e a criar cada vez menos.
Durante a primeira aula da disciplina de
Preparação Pedagógica do Programa de Aperfeiçoamento de Ensino (PAE), a qual
visa a formação de professores para a docência no ensino superior, algo
disparou o desejo pela releitura daquele texto e, ao relê-lo, deparei-me comigo
mesma academicamente mais ingênua e imatura, mas com diversas percepções e
incômodos que ainda permanecem. Comecei o texto descrevendo uma sala de aula em
período letivo: “fartamente recheada”
de estudantes sentados, enfileirados e de frente para o professor detentor do
conhecimento. Na sequência, apontei alguns questionamentos que mais ouvi
de alunos do ensino fundamental II e médio em meus primeiros estágios: “Por quê
as aulas são chatas?”, “Por quê eu tenho que aprender isso?”, “No que isso me
será útil?”.
Por quê estou aqui reproduzindo um texto
escrito por mim anos atrás? Lendo-o hoje, como pós-graduanda em Educação na
FEUSP, fiquei abismada ao perceber
que essas mesmas questões são repetidas em salas de aula da Educação Infantil à
Pós-graduação seja em instituições públicas ou privadas. Abismo, do grego abissos,
significa “sem fundo”, foi apropriado pelo latim como abyssos, significando “profundidade”. Fazendo uso dessa metáfora,
mergulharei na minha imagem abismada,
à beira do abismo, com o vento no rosto, olhando para a sua profundidade e
imensidão ao horizonte. Deste lugar, seguirei tecendo este texto de caráter
reflexivo e pessoal como quem vai olhando ao redor e contando o que o cutuca.
As aulas da disciplina do PAE começavam
sempre logo após o término dos encontros do Núcleo de Dança do Laboratório
Experimental de Arte-Educação e Cultura (lab_arte), do qual sou responsável e
cujas experiências e revelações recheiam e dão sentido a minha pesquisa de
mestrado.
No contexto da Faculdade de Educação da USP, o lab_arte inaugura, espaços de formação viabilizadores de experiências que incitem a sensibilidade a partir da percepção da possibilidade de uma razão que pode também ser sensível, unindo aquilo que nos aparece heterogêneo a uma só existência, buscando a formação da pessoa intrínseca a cada professor em formação inicial.
Sendo lá que se dá e acontece minha mais forte relação com a docência no ensino superior
e com a formação inicial de professores em graduação (alunos da pedagogia e de
licenciaturas que realizam seus estágios e estudos independentes no
laboratório), posso dizer que era impossível me desvincular dessas experiências
no decorrer das aulas. Ali, ecos se fizeram e o primeiro, era voz de uma aluna
da pedagogia da FEUSP falando de suas experiências em diversos núcleos do
lab_arte:
“Participar do lab_arte me faz uma
professora mais feliz.
Antes disso, em todas as aulas, eu me
imaginava uma professora triste.”
Logo, outro eco
começou a se intercalar com aquela voz como quem inicia uma conversa. Era eu
mesma questionando:
“O
quê aconteceu a essa jovem aprendiz de professora para agora, vivendo coisas
dentro do lab_arte, conseguir se vislumbrar uma professora feliz?”
“Quem
estamos querendo formar?”
“Quem
é o profissional que queremos formar?”
“E
a pessoa que queremos formar? Queremos formar pessoas ou profissionais?
Consideramos
que cada profissional é também uma pessoa?”
“O
que acontece nas universidades?”
Observando o
ensino superior público, vê-se que ele se dá em um espaço acadêmico com foco em
pesquisa e rigor epistemológico, enquanto o ensino superior privado – apesar de
possuir contextos tão diversos quanto o número de universidades que existem –
costuma reproduzir uma lógica educacional instrumental e conteudista voltada
fortemente para a prática profissional. No entanto, voltando nosso olhar para
os dois tipos de ensino superior, percebemos que ambos estão permeados por uma
razão dicotômica que fundamenta o racionalismo científico e compreende a vida e
o mundo como polos antagônicos, separando sujeito-objeto, cultura-natureza,
corpo-espírito, razão-sensibilidade. Os currículos seguem buscando formar
acadêmicos e profissionais e se esquecem de que estão formando pessoas, de que
somos aprendizes por toda a vida e que nos formamos a todo instante, no
cotidiano daquilo que nos acontece, das nossas experiências.
Em uma das aulas do PAE, ouvi sobre a
necessidade da “profissionalização do mestre”. Compreendo que essa colocação
dizia respeito à demanda por uma maior preocupação com o preparo e com
valorização da profissão de professor/docente no ensino superior, o que por
muitas vezes se caracteriza mais como um trabalho extra que se faz para
complementar renda. No entanto, a expressão “profissionalização do mestre” me
despertou um estranhamento muito grande.
Diz Georges Gusdorf, em "Professores
para quê ?" (1987, p.56):
“O professor ensina a todos a mesma coisa: o mestre anuncia a
cada um uma verdade particular, e se é digno de seu trabalho, espera de cada um
uma resposta particular, uma resposta singular e uma realização".
Se olharmos para o que tem se dado no
âmbito do ensino superior, percebemos professores transmitindo seus
conhecimentos técnicos e acadêmicos fundamentais para a profissionalização e
sucesso de seus alunos. No entanto, lembrei novamente de Gusdorf (p.81):
“O mestre não limita sua influência a conselhos técnicos, a
uma orientação epistemológica, não é apenas um guia do aluno através do
labirinto de sua própria existência. Graças à ação persuasiva de sua presença,
e talvez sem que isso seja expressamente posto em questão, desfaz as
contradições íntimas: explica cada um a cada um, apontando os rumos decisivos.”
Vivemos um processo de profissionalização
do mestre, o que não faz sentido em sua própria ideia, fazendo com que a noção
de mestre esteja cada vez mais se perdendo. Não se aprende a ser mestre ou
discípulo, mas se percebe que, de repente, na relação, mestre e discípulo
acontecem. Seja de ensino básico ou superior, a sensibilidade do professorado
ficou inerte após tantos anos de uma educação que enrijeceu a sua formação transformando-a
em um processo de aquisição, acúmulo e utilização de conhecimentos. Sentindo a
necessidade de compreender melhor sobre um possível despertar de sensibilidade,
retomarei aquele primeiro eco advindo da voz de uma professora ainda em
formação inicial. Me parece que o seu virar de seus olhos, o seu abrir de
ouvidos, o seu ampliar de tato e fungar de nariz, de certa forma, a faz
perceber-se como professora capaz de olhar mais profundamente com todos os seus
sentidos os processos de formação de seus alunos, abrindo as portas de seus
dias para momentos de maestria, dando sentido a sua existência docente. Esta
jovem estava à beira do abismo, entristecida com o que via, com o que aprendia,
com a reprodução de métodos e mergulho didático possíveis para quem está com a
visão enquadrada nos padrões curriculares a ela apresentados. E, de repente,
ela se viu num abismo que não era apenas precipício, mas que se apresentava
como imensidão possível de práticas docentes criativamente articuladas por ela.
Dessa forma, quase beirando o romantismo,
mas – ainda assim – deixando-me dominar pela trágica afirmação da vida e da
realidade como elas são, "apesar de"... Reflito:
Se a educação está à beira do abismo.
O que precisamos perceber é que a beira do abismo não é o lugar
onde você só tem a opção de despencar.
A beira do abismo é o lugar em que você pode olhar para as
profundezas de si
e a imensidão do mundo para, então, se preparar para alçar o voo
que
Fernão Capelo Gaivota tanto buscou.
* Este blog existe ara dialogarmos sobre Educação, Arte e Cultura.
Fiquem à vontade para mandarem comentários e emails!!!